10 fevereiro, 2017

O GALO DA MADRUGADA

Por:
Márcia da Silva Sousa
Regional MARANHÃO
E-mail: silvasousa_m@hotmail.com













Dona “Dos Anjos” ou Maria de Durval, como é mais conhecida Dona Maria dos Anjos, é casada com “Seu”Durval  e foi uma das primeiras moradoras da Boa Vista. Nascera ali, pelo que se lembra. Ali se criara e se casara com Durval, jovem que cultivava flores “de defunto” para vender na praça do cemitério do Gavião. Durval é um homem forte e orgulhoso do ofício, que só abandonou por imposição dos filhos, após um AVC que o deixou meio sem juízo. A Boa Vista é uma comunidade rural que surgiu entre São José de Ribamar e São Luís, sem que ninguém soubesse dizer, até bem pouco tempo, a qual dos dois municípios pertencia. Bom para alguns políticos, que lá arrebanhavam votos e depois se eximiam da responsabilidade de promover as benfeitorias que prometeram, visto que era ali uma espécie de limbo intermunicipal.  
           
Dos Anjos é uma mulher vigorosa, de olhar severo, raciocínio rápido e um humor peculiar. Matriarca no amplo sentido da palavra é respeitada com reverência por filhos, netos e pela comunidade. A conheci anos atrás, através de um filho seu que se tornara meu funcionário e posteriormente meu compadre.  Fizemos amizade fácil, admiração mútua, coisa rara entre mulheres, assim, logo de cara. Frequentar o sítio de Dos Anjos é sempre um retorno à infância na casa dos meus avós, tudo muito parecido.  Costumava levar meus filhos lá para brincarem enquanto ficávamos numa prosa gostosa à sombra de uma mangueira. Me divertia muito com o papagaio, vendo a criação de galinhas da terra e os porcos criados presos à base de frutas e sobras de comida, além dos lindos canteiros com flores “de defunto” de toda sorte, que seu Durval fazia questão de mostrar cheio de orgulho e sempre me oferecia um buquê que eu aceitava meio a contragosto, vai agourar outra. Uma  gorda galinha, guisada com batatas e famoso pirão de parida eram servidos nestas ocasiões, acompanhados de arroz pilado em casa, macarrão na manteiga de garrafa, fava, feijão com jabá, salada de alface e tomates cultivados lá mesmo,  e para arrematar algumas cervejas estalando de geladas. O banquete me nocauteava e eu caía em uma rede na varanda, onde passava o resto da tarde.
           
Sabedora de minha preferência pelas coisas do mato, vez por outra recebo em casa uma galinha caipira, um capão ou um pato, todos devidamente tratados, só no ponto de por na panela, gentileza que Dos Anjos faz questão de manter, ignorando meus falsos protestos para que não se incomode comigo. Ela manda e ponto final. 
Um dia, cedinho, recebi uma ligação, era Dos Anjos, esbaforida e falando mais alto que de costume:
           
- Bom dia senhora! A senhora quer um galo pro seu almoço amanha? É que tem um galo doido aqui que só ataca as meninas! Acabou de dar uma esporada na barriga de uma neta minha! Senhora, isso tá de um jeito que ninguém pode mais ir no terreiro!
           
- Calma mulher! A menina tá muito ferida? Mande esse galo pra cá que se dá uma boa serventia a ele!
           
Ao voltar do trabalho à noitinha, me deparo com um galo enorme, vivo, amarrado dentro de um cofo, emitindo um som macabro, quase um grunhido e muito ameaçador. Pensei: pra Dos Anjos não ter dado cabo do bicho ele deve ser o cão em forma de galo! Mas penalizada com a situação do prisioneiro pedi ao meu funcionário que acabasse logo com aquilo, mate logo esse bicho que amanhã eu tempero. Tomei um banho e me deitei pensando nos galos que povoaram minha vida, os garnizés valentes que me botavam pra correr quando menina, o imponente galo branco com rabo de penacho amarelo que mandava no terreiro da casa da vovó, o galo azulado que só vi na casa do tio Zé e jurava que era um urubu, o galo magro, coadjuvante no terreiro do galo branco e que acabou sendo devorado por uma mucura. Tantos galos, sono, cansaço... adormeci.
           
Acordei de um salto com um barulho ensurdecedor, atordoada tentava entender o que acontecera, o relógio marcava 4h20min!  Outro estrondo! Outro susto! Que é isso?  Parei. O coração querendo sair pela boca! Silêncio... Devagar olhei entre as frestas da janela, nada. De repente outro estrondo e novo susto. Era o galo!!! Ele não matou o galo que agora estava cantando, retumbante, rouco e forte, a plenos pulmões! E assim se manteve até o dia clarear. E não houve na vizinhança um cristão que não tivesse sido acordado pelo infame. Os condicionadores de ar, as paredes à prova de som, nada, absolutamente nada abafava o canto sobrenatural daquele galo. Ao sair de casa deparei com alguns vizinhos na rua. Todos querendo saber de onde surgira o galo da madrugada. Com a cara mais limpa me fiz de desentendida: eu não ouvi nada, estava tão cansada que apaguei na cama.  E saí de fininho, deixando em casa, recomendações severas quanto ao destino do galo doido. Passei a manhã com sono, trabalhando em ponto morto e pensando naquele galo. Ao chegar para o almoço lá estava ele, lindo, ao molho pardo, numa travessa de louça, acompanhado de arroz pilado em casa e pirão de farinha d’água. Abri uma cerveja trincando de gelada, depois dormi a tarde toda.



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