10 fevereiro, 2017

RONDA NOSTÁLGICA

Por:
Ildo Simões Ramos
Regional BAHIA
E-mail: ildosimoes@uol.com.br









Entrado na casa dos enta, começo a render-me à fila dos cartões de crédito, dos planos de saúde, dos passes livres para as indefectíveis pongas nos coletivos dos motoristas apressados. O último esculápio com quem me consultei, nos quinze minutos que recomenda a Organização Mundial de Saúde, afirmou sem me olhar nos olhos, onde estavam as marcas da traição e da mentira, que eu tinha uma saúde de ferro, meus dados pressóricos estavam ótimos. Iria passar apenas uma série de exames de rotina e me recomendava fazer umas caminhadas que eram a coqueluche do momento. A lista de exames perdia um pouco para os volumes de meu Pequeno Dicionário de Língua Portuguesa o que começou por desencorajar-me. Sem mexer um músculo facial e sem demonstrar dúvidas quanto às recomendações médicas, saí daquele consumitório sentindo-me com a vida por um fio. Restavam-me as caminhadas. Parti pras caminhadas matinais, por minha velha e querida Cidade do Salvador na tentativa dum reencontro nostálgico. Não gosto do termo porque nostalgia sempre me dá idéia de coisa antiga, ultrapassada, estradas sem volta. Mas já que me foi de há muito a adolescência fui curtir a jovem senhora de pouco mais de quatrocentos anos. Temos, portanto, muito que recordar. Caminho por suas ruas de outrora passeios bem cuidados, varridos, lavados e até, por vezes, perfumados pra tirar o odor da necessidade fisiológica do cãozinho desavisado que deixou sua marca por ali. Na esquina um edifício modernoso, de arquitetura, cujo autor não deve ter empunhado mais que uma colher de pedreiro. Mais adiante uma ruela onde sofri minha primeira desilusão amorosa. Faz tanto tempo que sequer me recordo da face da suposta doce amada. Só me lembro de ter amargado uma ressaca homérica de cachaça e coca-cola.
             
É um pouco mais que madrugada e o silêncio já foi rompido por coletivo fumacento, motorista de maus bofes que passa tirando fino nas minhas pernas já não tão ágeis. Ouço uma voz que a princípio não me dou conta. Passados alguns segundos repete-se a mesma indagação. Miro em volta e não há, no momento, vivalma. Tento testar-me a percepção e, parece, as  coisas estão nos seus devidos lugares. Se não estou sendo vítima de alucinações a voz é de minha cidade. Lembro-me de ter lido nalgum periódico que as cidades são organismos vivos. Então é isto. A voz é da minha cidade. Procuro responder a primeira indagação que é sobre a perplexidade de tanta mudança nas suas artérias. A partir daí estabelecemos um salutar diálogo meio surrealista, é claro, porque dava a entender pelas pessoas que iam cruzando comigo, que alguns neurônios tinham escapado de minha cachola. Não dei tratos à bola e fui dando asas à minha imaginação. Perguntei pelas marinetes, pelos bondes da linha circular, alguns números ainda guardados na memória, que diziam do destino: Mata Escura, Fazenda Garcia, Ribeira, Barra.
           
- Estão nos álbuns de fotografias dos saudosistas. Estou sofrendo as mesmas doenças de que certamente você está acometido e não me resta fazer muita coisa. Não tenho médicos, mas paisagistas, arquitetos que cortam minhas entranhas com retroescavadeiras e vão levando, Deus sabe pra onde os meus vestidos de menina-moça,  meus sapatinhos de cristal de Cinderela e, pior, não vejo no fim dos diversos túneis que escavaram, uma luz onde possa vislumbrar um príncipe que num beijo mágico venha me despertar desta letargia. Aos olhos dos desavisados estou sendo rejuvenescida, sem se darem conta de que estou perdendo a fonte de aconchego dos meus diletos filhos de que você é um exemplo que estou perdendo.
           
Falo de minha última consulta, da mentira estampada na cara do médico que me atendeu, conto as mazelas dos desgovernos que nos atormentam. Digo dos meus cabelos brancos, das pernas a esta altura meio trôpegas pelo que peço que me deixe sentar num dos bancos da pracinha à minha frente que ainda guarda uma corbeille e fitinhas de recente inauguração. Confesso que não fui feliz no elogio que fiz do logradouro público que agora mitiga o meu cansaço.

- Fique à vontade. Onde está este banquinho era um pé de goiabeira em que alguns sanhaços matavam a fome devorando seus suculentos frutos e descansavam de seu vôo às vezes fatigante. Ainda me presenteavam com uns gorjeios meio desafinados, mas eu ficava feliz. Quem não gosta da voz da Natureza? Alguns moleques que voltavam da escola às vezes lhe atiravam pedras de baleadeira, mas pra minha felicidade tinham péssima pontaria e os passaricos tinham asas velozes.  Eu ria e eles se assustavam pensando ser alma do outro mundo e saiam em desabalada carreira.
           
Longe de mim, magoar minha cidade, mas a pracinha e seu banco de design moderno tinham aliviado as contrações dos meus músculos fatigados. Deixei que ela completasse a queixa e fui andando. Chego à beira mar e olho aquele mundão de água a transformar-se em ondas e quebrar na praia. Fico indignado porque com os sargaços deixados pela maré que agora retorna em vazante, vem uma garrafa plástica certamente deixada em alto-mar por desavisado navegante. O mar tem uma cor indefinida. Não me sinto à vontade pra descrever o seu matiz. Fico entre perplexo e indignado. De novo me chegam aos ouvidos um murmúrio de voz que de imediato a reconheço.
           
- O mar / quando quebra na praia / é bonito / é bonito.

- Sei que está pensando como hoje eu penso. Pedir ao vate cantador que mude o tempo do verbo. Já me levaram o verde, cortaram minhas entranhas, trocaram à revelia meus vistosos trajes de que tanto me orgulhava.  Confesso que estou apreensiva, pois um dia podem entender de me levar a alma.
           

Peço socorro a Casemiro e retorno pra casa a recitar-lhe uns versos em respeitoso silêncio “ Ah que saudades eu tenho/ da aurora da minha vida/ da minha infância querida...”








***

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado por participar.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...