04 novembro, 2017

8º CAPÍTULO

Por:
Hamilton Raposo
Regional MARANHÃO














Zé Camões tinha como hábito de vida a discrição. Não gostava daquelas conversas sem muito conteúdo, dos sorrisos impróprios e dos arroubos de felicidades. Era extremamente reservado, calmo e de poucas palavras. Conversava sempre em tom de voz baixo e não demonstrava, apesar da sua discrição, arrogância ou falta de educação. Tinha em Mundico Medeiros um amigo, tratavam-se como se fossem irmãos e esta amizade foi se transferindo paulatinamente para Zé Carlos, Cazuza e Mário.

A amizade com Zé Carlos foi muito da espontaneidade e simplicidade daquele negro de Aldeias Altas, descendente de escravos lá das bandas de Guimarães, que brincava, dançava e adorava as suas divindades em um animado Terecô nos arredores da Vila do Buriti. Zé Camões apesar do seu conhecimento filosófico da religião dos espíritos tinha também peculiar interesse pelas coisas espirituais da terra, das matas, rios e mares. Sempre quis saber quem era “légua-boji-boá”? Como um homem como Zé Carlos, ao som de tambores, tocadas por mãos fortes e calejadas, em um compasso rítmico e alucinante, era capaz de transformar a sua personalidade? Tudo isso intrigava o conhecimento científico, filosófico e religioso de Zé Camões. As vezes em que esteve no Terecô, no terreiro de Zé Carlos, pôde observar o rebolado de “légua-boji-boá e o encantamento de “Princesa”, uma negra altiva, irmã de Zé Carlos, que incorporava o caboclo “Tupinambá”, que com seu arco e flecha, protegia a mata e os seus devotos, sendo capaz de flechar espiritualmente de forma mortal, qualquer um que agredisse ou ameaçasse a negra Princesa ou qualquer devoto do caboclo das matas.

Tudo isso incomodava Zé Camões e ele não encontrava explicação para este fenômeno sobrenatural, os espíritos que conhecia, eram todos pessoas conhecidas e que haviam passados em vida pela terra. Zé Carlos também queria uma explicação de como Francisco, um rebelde bolchevista que havia passado pelo semiárido e inspirado um utópico movimento popular, poderia incorporar em um homem místico e apolítico. 

Todas estas indagações eram conversadas reservadamente entre Zé Camões e Mundico Medeiros, comentavam entre si a evolução de Zé Carlos na intepretação na doutrina e festejavam a liberdade de expressão religiosa que acontecia na Vila do Buriti, não havia mais necessidade da aprovação dos coronéis, do clérigo e da sociedade, todos não se sentiam mais incomodado com o batuque dos tambores e assim Zé Carlos podia rebolar a vontade quando possuído por “légua-boji-boá” sem precisar dá satisfação ou esconder-se nos fundos dos quintais.

Por mais liberdade de expressão religiosa que pudesse existir naquele lugar, chamar a divindade que incorporava em Princesa e Zé Carlos de caboclo talvez parecesse um desrespeito a entidade espiritual. O caboclo Tupinambá na verdade se refere a uma grande nação de índios que dominavam o litoral brasileiro. Era uma nação aguerrida e que constantemente lutavam entre si e geralmente os derrotados eram devorados em rituais antropofágicos. A chegada dos escravos ao Brasil, negros africanos, que trouxeram consigo e logo incorporado à cultura indianista brasileira, rituais religiosos, que se transformaram em culto, onde espíritos de índios, chefiados pelo cacique Tupinambá e sua companheira a cabocla Jurema predominavam nos terreiros e cultos dos afros descendentes. Assim Zé Camões tomou conhecimento das manifestações que aconteciam no terreiro de Zé Carlos, e foi Princesa, com sua sabedoria da senzala, que explicou a existência das divindades nativas e da África mãe.

Princesa conhecia a sua história e a história dos seus antepassados, sabia informar que seus pais negros escravos, haviam fugidos da Usina Aliança e se refugiados nas matas de Guimarães, onde viveram por algum tempo e com a revolta dos balaios, vieram com os filhos para as proximidades de Aldeias Altas e depois ficaram perambulando pelo semiárido até se estabelecerem na Vila do Buriti.

O entendimento de Zé Carlos e de Mundico Medeiros sobre o bailado, cantorias e a transformação e mudança de comportamento observados no terreiro, só podiam ser explicado por uma ciência que entendesse o homem, a natureza e a sua relação com o sobrenatural, estando o homem, o mais evoluído que pudesse, como intermediário desta relação. 


Majoritariamente ou quase que exclusivamente eram os homens que determinavam a religião e a ordem dos cultos, às mulheres quase sempre em um segundo plano, comandavam as ladainhas, exerciam a função de carpideiras em funerais ou vestiam-se de branco durante as missas, as chamadas filhas de Maria. Coube entretanto a “Princesa”, no Terecô da Vila, a quebra de todos os paradigmas, e junto com o caboclo Tupinambá, serem atores principais neste grande espetáculo da vida.


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