03 novembro, 2017

O DUELO ENTRE O MENDIGO E RAUL

Por:
Andrea Pio de Abreu
Regional SÃO PAULO
E-maildra.andreapio@gmail.com










Há muitos anos ouvi uma história interessante. 

Havia um mendigo que vivia numa praça. Não era qualquer mendigo, daqueles que pediam esmolas e nada tinham a dizer. Era um mendigo com concepções, que vivia discursando uma mesma ideia por anos e anos. Era um idealista, revoltado com as instituições públicas. Um belo dia, certo senhor – que sempre passava pela praça – perguntou: Esses anos todos você repete as mesmas coisas e ninguém presta atenção. Ainda assim, você acredita que pode modificar as pessoas? O mendigo então olhou para ele e respondeu: Posso não modificar as pessoas meu senhor... mas no dia em que parar de falar, elas é que terão me modificado.

Gostava tanto dessa história que a repeti inúmeras vezes, desde o período escolar até a faculdade... mal sabia o tal mendigo que mesmo não conseguindo convencer ninguém, pelo menos havia conseguido transformar a minha mente, numa grande praça.

Mas um belo dia, durante a residência de clínica, diante de determinada situação, eu me perguntei: Puxa vida... já atingi tantos objetivos nesses anos todos enquanto este mendigo fica lá parado na praça falando as mesmas coisas? Ele não evoluiu, não conseguiu nada com isso, não fez qualquer pessoa mudar, não adquiriu outros conhecimentos... e eu fico aqui glorificando-o? Pensando bem, será que é possível evoluir mantendo o mesmo ideal? A partir de hoje, não conto mais essa história.

Não contei mais... até hoje.

Paradoxalmente, durante todos esses anos também gostava muito de uma música de Raul Seixas, que dizia mais ou menos assim: “Eu prefiro ser uma metamorfose ambulante, do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”. Ah... eu também achava isso o máximo. E diante das minhas mudanças conceituais levadas pelo amadurecimento, sempre pensava nessa música como um incentivo ao seguinte pensamento: Qual o problema em mudarmos? Que mal há em revermos nossos conceitos e simplesmente mudarmos nossas ideias? Por que nossos sonhos não podem simplesmente amadurecer com a gente?

Até que um dia – há poucos anos – ao ouvir essa música novamente... simplesmente deixei de gostar. Como assim ser uma metamorfose ambulante? Que ideais e conceitos – realmente verdadeiros – sobrevivem às constantes mudanças?

Não seriam então todos eles superficiais demais? Influenciáveis demais? Frágeis demais? Percebi que ao longo dos anos, essa música na verdade não tinha nada a ver com minha personalidade. Costumo manter meus ideais e conceitos até mais do que gostaria.
Não a cantei mais... até hoje.

Então, vejo-me aqui, entre o persistente mendigo da praça e o mutável e saudoso Raul. Se um contraria o outro, por que não concordo com ambos? Sinto-me esse mendigo quando penso de forma conservadora na prática médica. Podem surgir inúmeras mudanças, inúmeros avanços, da nanotecnologia à cirurgia robótica (conquistas certamente preciosas), mas são todos esses complementos ao que há de mais antigo no dia a dia do médico clínico: a anamnese, o exame clínico e a relação médico-paciente. Eu me transformo nesse mendigo todas as vezes em que um paciente vem ao consultório com uma lista de exames para serem solicitados. Ele mesmo não quer ser examinado... já se consultou com o “Dr. Google”.

Eu me transformo nesse mendigo todas as vezes em que um paciente hipertenso reclama da não resolutividade dos anti-hipertensivos. Ele quer mais remédios, mas não se esforça para diminuir o sal da alimentação ou tomar os medicamentos de forma regular. Eu me transformo nesse mendigo todas as vezes em que um paciente chega dizendo que tomou “os medicamentos da propaganda”, ou aqueles receitados na farmácia, convertendo-se à banalização da terapêutica (hoje as farmácias parecem lojas de conveniência, muito mais do que farmácias). Sim... em todas estas e outras inúmeras situações eu faço discurso... e não importa quanto tempo passe, quantas mudanças ocorram: eu não vou mudar.

Mas sinto-me também a “metamorfose ambulante” de Raul em outras questões da prática médica. Há anos, durante minha formação, achava errado um médico usar o computador no consultório, em vez do papel e caneta. Mudei. Hoje sei que a informatização da medicina não aniquila a relação médico-paciente. Ela também é um complemento que pode vir a ajudar... e ainda minimiza o problema de não entendermos a letra de vários colegas. Há anos considerava errado que os pacientes buscassem informações sobre sua doença na internet (Dr. Google). Hoje acho válido – desde que já não venham com o diagnóstico pronto e a lista de exames a serem solicitados. Mas que, ao contrário, venham com maior noção de sua doença e dúvidas, tendo ciência do quanto é importante se tratar adequadamente.

Há anos era totalmente contra o uso de e-mails e celulares para me comunicar com os pacientes. Hoje acho que são importantes (com certo limite, logicamente), desde que eles venham nas consultas marcadas. Não está errado terem dúvidas em determinadas situações, que os impossibilite de virem ao consultório. Assim, nestas e muitas outras situações realmente mudei. E continuo mudando, adaptando-me a este contexto sempre mutável da prática médica. Neste sentido, como tudo na vida, analisando de um extremo ao outro vejo que a melhor opção é não ser radical.

Mudar de ideias sem abrir mão dos ideais. Mudar condutas sem abrir mão dos valores. Mudarmos nós mesmos... sem perdermos nossa verdadeira essência. Somos todos um pouco mendigos e um pouco Raul. Aceitamos mudar... mas nem tanto.





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