19 abril, 2017

A ROSA DO CAMPO

Por:
Arary da Cruz Tiriba
Regional SÃO PAULO
E-mail: atiriba@terra.com.br











São Paulo, abril de 19..
Querida Menny Notta:

FAZES PARTE da família brasileira típica. Pais e irmãos vivem da terra. Robustos, nutridos pelo arroz, feijão, mandioca, ovos de galinha, camarão do rio, banha e carne de porco, além da laranja, banana e abacate, frutas que abundam no pomar. A compleição física não impediu que os três manos, valorosos moços do campo, adoecessem simultaneamente; foste poupada, por graça divina. Eu, mais o Dr. Jolí, assistimo-los na Enfermaria, durante essa estranha peste dos lavradores; felizmente nenhum deles morreu e aí estão, devolvidos à aldeia. Daí a nossa visita, aos teus pagos, à beira-rio, ao Catas Altas do Vale  do Ribeira. Para desvendar enigmas da doença... Foi assim que nos conhecemos. Eu, um caçador de epidemias, o jovem médico meu discípulo - o Dr. Jolí -, e, tu, aos 11 anos, toda meninice! A fotografia que fiz de ti - a que ora te envio -, à margem do Catas Altas, é expressiva. Fizeste bem em correr para vestir o teu longuinho, para posar - só vaidade e felicidade! -, no teu porto fluvial. Ficaste muito, mas muito bonitinha!
beijo para Menny Notta,
do amigo Doutor Perí.

***
Catas Altas, maio de 19..
Prezado amigo Perí

OLHA DOUTOR PERÍ peço muitas desculpas por não ter dito ao Senhor nem muito obrigado de ter dado os livros e as outras coisas que o Senhor me deu.  Olha doutor Perí eu gosto muito do Senhor e de todos aí. Olha doutor Perí eu nunca até agora não achei um moço bonito como o doutor Jolí. Olha não sei se ele é moço ou é casado mais acho que se ele é casado a mulher dele não vai achar ruim comigo porque sou apenas uma criança. Mando também muitos abraços e beijos a todos principalmente ao Senhor e o doutor Jolí que eu gosto muito. Aqui vai uma rosa, para o doutor Jolí. Desculpe de ser uma rosinha feia mais é com muito carinho.

Doutor Perí dê o meu endereço ao doutor Jolí se ele quiser escrever pra mim.
Tchau Tchau, de sua amiga
Menny Notta.

***
São Paulo, junho de 19..
Querida Menny Notta

QUANDO SUBO o Catas Altas, o Betari, o Iporanga, o Ribeira, converso com pedras. Que têm vida, não duvides. Que são hábeis para comunicar é, também, verdadeiro. Assim, como incorrigível mortal que se deixa atrair pela formosura, nas pausas de minhas pesquisas sobre doenças, ergo, do leito do rio, pedras que possuam fascínios: revestimento de mantos, composição de cores, cintilação de cristais, cuidados de polimento, capricho de formas, qualidades que só o toque das águas naturais consegue esculpir. Não as coleciono, pois devolvo-as à corrente - a que não submete -, que pode conduzi-las um dia ao mar aberto...

Durante andanças pelo Vale do Ribeira, Menny Notta, tenho experimentado emoções muitas. E evocações incomuns! Histórias que contar-te-ei um dia... Narro-te o mais recente episódio que já integra o meu arquivo de memória. Juro-te, aconteceu.

SENTADO, RECOSTAVA-ME à árvore, para traduzir o vozerio das trêfegas águas a saltar rochas. Relaxava o corpo cansado quando espiei por um oco da folhagem. Descobri! o quê?... Observei, sem ser visto - à distância de metros -, um velho Mago de alvas barbas e cabeleira. A meditação do ancião foi interrompida pela menina, de longa e diáfana veste branca. Imagem: a do anjo! Beijou com doçura a face do velho. Depositou-lhe entre as mãos enrugadas uma rosa feia e desapareceu, tão inesperadamente como surgira.

Assisti e ouvi com espanto à conversa que se seguiu. Do velho com a rosa! Não te dizia, Menny Notta, que pedras falam? quanto mais rosas!!! que perfumam, encantam e revelam amores... "Que sucede?" perguntou o velho à rosa, "se teus folíolos - rubor instável a alternar com o pálido -, refletem tua intranquilidade?" "Amigo", respondeu a rosa, "se assim me vês inquieta, é porque não consigo esquecer sonho. Sonhei, eu, simples rosa, que me debruçava à fonte, ao lado de fidalgo e aromático vegetal como jamais vira neste Vale. Suas pétalas eram finas e brancas como o lírio e à sua cabeça pousava nobre coroa dourada. Parecia um príncipe, um ser divinal!... Perdoa-me, Mago, o sonho semelhou tanta realidade que me inebria e atormenta. Como gostaria de tornar à quimera!..."

"Querida," disse afetuosamente o Velho, "tua descrição corresponde à flor que não pertence à nossa flora. Tem origem em apurada estirpe do Velho Continente, da borda do Mediterrâneo." E continuou: "Formosas, somente formosas, como tu, apaixonam-se pelo possuidor desse magnetismo. Narciso¹, minha cara, é seu nome." Por instante a rosa enrubesceu. E emudeceu. E, prosseguindo, o Sábio: "Teu sonho caracteriza teu ser sensível. Contempla ao teu redor: por que brotam, despretensiosas, as flores que te cercam? Simplesmente, porque o amor, que ora se revela para ti, é onipresente. Como o pólen, se derrama pela natureza..." E terminou, sentenciando: "recuperarás teus matizados, encarnados e purpúreos, de tintes essenciais à policromia do nascente. Pertences a este Vale. Entre seus dois crepúsculos, és o do amanhecer."

MENNY NOTTA, a esse ponto despertei com estremecimento. Caíra-me sobre o coração uma rosa-do-campo. Soprava forte brisa. Éolo², fora, certamente, o carregador da flor. Procurei outra vez pelo Velho. Não mais o vi. Acolhi a rosa com cuidado para preservar, uma a uma, suas pétalas. Admirei-lhe a beleza e a simplicidade.

E, eu, que falo às pedras, por que não diria à rosa-do-campo? "Minha querida, transmitirei tua mensagem. O Cefiso³ que ronda por esse rio correntoso me transportará até o esbelto Narciso; entregar-lhe-ei a rosa-do-campo que não é nada feia; nem um pouco! ao contrário, a mais graciosa! Além de seu colorido e fragrância, é capaz de emitir vibrações do mais puro amor, a desfazer distâncias, unindo o Vale ao jardim mais longínquo."

Menny Notta, recebi tua carta. Desejo muitas outras. Não te acanhes, pois que escreverás melhor que eu. Apenas ponho a idéia no papel, enquanto, tu, imprimes a alma, o que é expontâneo, difícil, sem distorção! Que permaneças criança por muito, muito tempo. Alegre e pura. Igual ao esquilo serelepe do teu SÍTIO NOTTA. Transparente, cristalina, como as águas do Betari. Nativa, a rosa-do-campo própria.

teu amigo, Dr. Perí
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¹ Narciso, belo e gracioso, teria longa vida, "desde que não se conhecesse nunca".
² Éolo, rei dos ventos.
³ Cefiso, deus fluvial.


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